segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Noites de verão

Adoro as noites de verão. Adoro aquele calor indeterminado, que continua a circular quando o sol desvanece. É uma sensação de que algo está para acontecer, uma agitação subconsciente em torno do porvir, e do não se acolher, mas de sair de casa com a cadeira na mão, e sentar na rua, e ver folhas se esfregando levemente com a brisa, quase que pedindo licença, e sentir essa brisa, sentir o calor e a energia deixados mais cedo pelo sol, essa bênção.
Quando está frio, gosto de sentar ao sol e sentir essa bênção se infiltrando em todos os intervalos do meu corpo.
O ser humano precisa e busca a energia, do sol e da vibração de momentos que nos fazem sentir vivos, como são para mim as noites de verão.
(escrito numa tarde fria à espera da chegada do verão, neste 21 de dezembro).

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Gaia


Quando você dá a mão ao seu filho e caminha confiante em busca daquilo que você vê tão claramente à frente, eu caminho com você, também confiante de chegar.
Quando você se assusta com o inesperado, eu me assusto com você, e quando você tenta, em vão, passar por cima de tudo, meu estômago dói de angústia.
Quando as ondas do seu mar resolvem descansar, e você consegue até boiar tranqüilo, eu flutuo com você, pensando, quem sabe este sono da ressaca não é mesmo eterno.
Até quando os passos do teu passado te dão uma rasteira, eu desabo com você.
Quando o medo e a solidão são tudo que parece te restar, para mim é também difícil acreditar que ainda há luz.
Mas quando essa luz, fraquinha mas fruto unicamente do teu esforço, começa a brilhar contra a parede, brilham também meus olhos, e a ternura do teu amor também me abraça.
Quando, finalmente, você explode de felicidade, esta palavra que você tanto buscou no dicionário da vida, contenho toda o meu êxtase em lágrimas discretas, embora queira gritar com você, embora queira cuspir esse calor que eu sinto com a tua conquista, que é como se fosse a minha, assim como a tua busca, angústia, tristeza e solidão, como se estivéssemos conectados, braços da mesma raiz, filhos da mesma Terra.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Cegueira

“Ó lá!”, apontou o tio, e o menino esticou o corpo no banco de ônibus, e seus olhos arregalaram como que para dar conta da imensidão daquela paisagem - o Pão de Açúcar - que se mostrava pra ele de súbito naquela enseada - a de Botafogo.
“É a Lagoa Rodrigo de Freitas!”, ele exclamou, com a excitação de uma resposta certa, sobre a Baía de Guanabara, e eu ri, não dele só, mas de mim também, porque lembrei como eu e minha irmã achávamos o mesmo quando crianças.
E de repente não conseguia mais tirar os olhos do menino e voltá-los ao jornal, porque aquele olhar me dizia: encantamento! E me dizia também: aos poucos perdemos esse encantamento, viciamos o olhar pra não ver tanta coisa bela, e não falo só das paisagens - embora também das paisagens, porque sempre enxerguei Deus nelas - mas também da beleza dos encontros, esses de todos os dias. Não é afinal uma coincidência dividirmos o mesmo tempo e espaço em toda essa imensidão? (não, não é).
Mas também construímos nossas próprias cortinas, me contava o olhar do menino, pras coisas feias, erradas, pros desencontros - das pessoas entre elas, de nós com as pessoas e de nós com nós mesmos.
Aquele olhar me falava dessa nossa cegueira, talvez a que Saramago quis descrever na história agora em cartaz em um cinema também na enseada de Botafogo, este palco com um pouco da beleza e da feiúra do mundo (e realmente não falo só das paisagens). Mas as nossas cortinas continuam fechadas para esse espetáculo?

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Pegadas na areia

Ele toca há 52 anos o som da madeirinha batendo no chocalho, sem nunca sair do ritmo, como as ondas do mar que lhe acompanham. Para quem escuta, é a senha de que lá vem o moço das balas de chupetinha e do biscoito de canudo, sempre juntos - ele, a bala, o biscoito e o som da madeirinha.
É parte da história do Rio, que ele escreve nas linhas tortas da areia todos os dias, há 52 anos. É o que ele me conta sentando nesta pedra onde o mar bate fraquinho e enquanto dá os últimos tragos do cigarro antes de iniciar mais um desses dias que se repetem há meio século.
Para ele a história se repete sim, e não como farsa, mas como uma reinvenção diária da caminhada ao som da musiquinha da madeira entre as pedras do Leblon - onde estamos - e do Arpoardor. Das pegadas que ele faz e se desfazem continuamente na areia.
Ele arremessa a ponta do cigarro, levanta e recolhe a caixa de papelão com a alça cilíndrica de madeira (também inseparável das balas, dos biscoitos, da música e dele). Dá o primeiro passo com esmero, depois o segundo, o terceiro, e quando vejo ele já vai longe, sem qualquer suspiro de cansaço pelo peso do caixote e da caminhada.
Talvez não sejam nenhum deles pesados para o seu Arino - ao menos é a lição que ele hoje me ensinou, sem saber.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Espelho

"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo (...)
Eu não dei por esta mudança
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?"
(Cecília Meireles)


Eu não dei por esta mudança...
Li esta frase no dia em que fiz 26 anos, e voltei a ela um dia depois, quando uma senhora disse: "amor? nunca tive tempo pra essas coisas. Meu amor é o tanque de lavar roupa". O mundo passou e ela não se deu por observá-lo...Hoje esfrega a mão sobre o rosto quando fala destas coisas, quando diz, com sorriso encabulado, que "amor é para quem quer".
Eu nasci às 9h30 de uma segunda-feira e, pra ser ainda mais entediante, sob o signo de virgem. Eu fiz 26 anos e não quero que as mudanças passem por mim desapercebidas, que o mundo passe e eu por ele, desapercebida. Mas parece algo inerente a mim, como a senhora alheia.
Às vezes acho que o mundo é um trem com vagões infinitos, e belos, e tristes, e trágicos, e engraçados, e interessantes, e amenos, e tanto e tanto que eu queria mesmo era assistir tudo deste banco da estação, neste não-lugar, neste eterno intervalo do tempo.
Mas o tempo não tem intervalo, não se despede. Cada pausa tem seu preço: são as curvas da estrada que se perde.
São as mudanças que não vemos, que não fazemos. As vozes dentro de nós que não ouvimos, que calamos nos tanques de lavar roupa da vida, esses nossos pseudo amores, essas verves mascaradas.
A cada espelho para o qual viramos o rosto nosso olhar se esvazia.
Eu fiz 26 anos e quero achar o meu espelho, quero ver no meu retrato as mudanças que não passarão desapercebidas.

sábado, 23 de agosto de 2008

Sem sal

Sem sal.
Sem qualquer bossa, sem um quê
Que faz do atleta um campeão, do professor um mestre,
Do encontro uma benção, do momento a eternidade.
Uma festa sem música, uma orquestra em silêncio,
Uma palavra sem sentido, um belo filme sem emoção.
O óbvio, mas não o sublime. O correto, mas não a paixão.
Sem sal.
Sem sol, mas também sem tempestade. Uma chuva fina.
Sem o êxtase, sem ir ao limite até que se esteja
Sem fôlego. Sem o suspiro. Um grito vazio. O grito
Sem explosão, sem a conquista sofrida.
Sem o abraço apertado. Um choro calado.
Sem inspiração, sem ação
Sem sentido.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Portas entreabertas


Sou só eu ou os espaços realmente ficaram menores; as portas, menos abertas?
Sou só eu ou tá por aí aquela sensação de que "eu não sou daqui" em todos os lugares, em tudo que é porta entreaberta, que me parece cada vez mais fechada?
Eu saí de uma porta (ou ela se fechou pra mim) para, enfim, explorar os mundos por detrás das portas que se mostravam tão abertas quando eu espiava da minha janela.
Mas por que agora eu tenho a sensação de que estou no corredor, em uma espera permanente, assistindo aos feixes de luz diminuírem?
Sou eu que hesito em empurrá-las pra descobrir, quem sabe, que pode que o vento as encostou?
Sou só eu ou mundo parece cada vez mais um grande corredor, um não-lugar de portas entreabertas, mas já quase fechadas?

sexta-feira, 14 de março de 2008

Agatha

Era como se as mãozinhas ainda estivessem ali, pressionando os botões do controle remoto do videogame, partindo as bolachas do lanche da tarde, tocando, tênues, para ver o que gritavam os vizinhos, a cortina branca agora furada pelas marcas de tiros, que também cravaram a parede e, para sempre, a vida daquele homem.
Desesperadamente calmo -talvez um dos piores desesperos-, sujo de sangue, de suor, de poieira e dessa humanidade perdida, ele se posiciona no exato lugar onde, horas antes, sua filha foi baleada, para mostrar sua tese de onde vinham os tiros, para contar os detalhes, as minúcias que cruelmente buscamos, daquela história -mais uma- aos que estávamos lá para conhecê-la in loco.
Era um desespero silencioso o daquele homem, cruelmente silencioso. Porque ele não gritava: falava baixo, até. Contava calmamente a história, pouco chorava.
De repente ele rompe a dor anestesida e, desviando das poças e marcas de sangue, joga no sofá, um a um e em cima das gotas de sangue, os livros escolares que as mãozinhas estavam a dias de começar a carregar. E pergunta, como que tentando desviar do problema central, o que fará agora com todos aqueles livros escolares novinhos que acabara de comprar. Ninguém sabe, ninguém ousa responder. É um desespero que cala fundo, é quase visível naquele vácuo de palavras, contidas por respeito às lágrimas do homem, que agora não mais se contêm.
Me viro para respeitar aquele momento. Olho para o chão, depois para a janela. E ali vai a pipa no céu azul, as roupas penduradas no varal. A tranqüilidade fajuta de uma tarde de sol forjadamente quieta, porque foi uma tarde que precedeu uma manhã estupidamente violenta.
Saio pela varanda da casa, onde uma poça de sangue descansa cruel embaixo de um biquini pendurado no varal e marcando território entre as pessoas ali sentadas sobre a revolta da dor e, mais ainda, sobre a revolta da sensação de impotência. Os olhos dessas pessoas denunciam isso, gritam isso.
Tudo está em estado de espera, é como se o próprio cenário não acreditasse que perdeu sua protagonista. Toda a casa estava decorada com o desespero silencioso do pai e a revolta dos olhos dos parentes: as paredes descacadas e afundadas com as marcas de tiros, o prato com pedaços de biscoito e o achocolatado derramado e o controle do videogame ainda pendurado na televisão, sob um quadro com a foto de Agatha posando e sorrindo, maquiada, produzida.
"Talvez era a princesinha da família", penso. A princesa que, como diz a música que toca no rádio do carro que me levou dali, aquele homem quis coroar, a princesa que sumiu no mundo sem lhe avisar -e talvez aquele homem esteja mesmo se perguntado o que a vida agora lhe fará.
Porque, assim, de um frame para outro, aquelas mãozinhas que há pouco pressionavam o controle do videogame que a menina jogava no seu último dia de férias descansam sobre uma maca fria do hospital. E viraram mais um número, talvez mais uma contabilidade dos "autos de resistência" da cidade, que não cessam de ser protagonistas nos aumentos percentuais de crimes a cada trimestre.
Virou um número, em vez de história. A história de Ágatha: Agatha fazia natação. Agatha queria ser veterinária. Agatha era alta. Agatha completara 11 anos há dias. Agatha estava no último dia de férias, que passava na casa do pai. Agatha disse: pai, pai, meu braço, depois de ser atingida por uma bala perdida dentro de casa e antes de morrer, nos braços do pai.
Agatha virou um número para a maioria de nós. Não para mim.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

ESCRITOS DE VIAGEM 1 - "...E se encontraram num sentimento humano"

Aconteceu durante uma suchá, uma espécie de debate entre judeus e palestinos. Lá estavam os dois homens, tão iguais, tão diferentes, disparando argumentos sólidos, discutindo a velha e cansada discussão de sempre. De quem é a terra, de quem é o Deus, de quem é a razão. Eram duas almas perdidas no mundo alheio, cada qual no caminho que lhe convinha, cada qual com sua venda, tateando nada mais que seus próprios mundos já tão pequenos, como é de praxe.
Quem presenciou aquele momento até então diria que é mentira: como pode esses dois homens tão cheios de suas certezas, suas raízes e seus povos, se abraçarem, se renderem um ao outro? Como pode, se havia um muro entre eles?
Mas se abraçaram.
Se abraçaram quando descobriram que ambos tiveram seus filhos mortos em um dos tantos confrontos, que já são meros registros, em vez de histórias. Os dois experimentaram o que dizem ser uma das piores dores do mundo, essa de ter que ver o filho morrer, numa inversão tão ilógica e cruel do rumo que o ser humano foi preparado para seguir.
E ao perceber a mesma dor um no outro, os dois desfizeram-se da venda que os cegava e os definia em caminhos paralelos. E choraram, e se abraçaram. "E se encontraram num sentimento humano", contou o interlocutor.