sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Pegadas na areia

Ele toca há 52 anos o som da madeirinha batendo no chocalho, sem nunca sair do ritmo, como as ondas do mar que lhe acompanham. Para quem escuta, é a senha de que lá vem o moço das balas de chupetinha e do biscoito de canudo, sempre juntos - ele, a bala, o biscoito e o som da madeirinha.
É parte da história do Rio, que ele escreve nas linhas tortas da areia todos os dias, há 52 anos. É o que ele me conta sentando nesta pedra onde o mar bate fraquinho e enquanto dá os últimos tragos do cigarro antes de iniciar mais um desses dias que se repetem há meio século.
Para ele a história se repete sim, e não como farsa, mas como uma reinvenção diária da caminhada ao som da musiquinha da madeira entre as pedras do Leblon - onde estamos - e do Arpoardor. Das pegadas que ele faz e se desfazem continuamente na areia.
Ele arremessa a ponta do cigarro, levanta e recolhe a caixa de papelão com a alça cilíndrica de madeira (também inseparável das balas, dos biscoitos, da música e dele). Dá o primeiro passo com esmero, depois o segundo, o terceiro, e quando vejo ele já vai longe, sem qualquer suspiro de cansaço pelo peso do caixote e da caminhada.
Talvez não sejam nenhum deles pesados para o seu Arino - ao menos é a lição que ele hoje me ensinou, sem saber.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Espelho

"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo (...)
Eu não dei por esta mudança
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?"
(Cecília Meireles)


Eu não dei por esta mudança...
Li esta frase no dia em que fiz 26 anos, e voltei a ela um dia depois, quando uma senhora disse: "amor? nunca tive tempo pra essas coisas. Meu amor é o tanque de lavar roupa". O mundo passou e ela não se deu por observá-lo...Hoje esfrega a mão sobre o rosto quando fala destas coisas, quando diz, com sorriso encabulado, que "amor é para quem quer".
Eu nasci às 9h30 de uma segunda-feira e, pra ser ainda mais entediante, sob o signo de virgem. Eu fiz 26 anos e não quero que as mudanças passem por mim desapercebidas, que o mundo passe e eu por ele, desapercebida. Mas parece algo inerente a mim, como a senhora alheia.
Às vezes acho que o mundo é um trem com vagões infinitos, e belos, e tristes, e trágicos, e engraçados, e interessantes, e amenos, e tanto e tanto que eu queria mesmo era assistir tudo deste banco da estação, neste não-lugar, neste eterno intervalo do tempo.
Mas o tempo não tem intervalo, não se despede. Cada pausa tem seu preço: são as curvas da estrada que se perde.
São as mudanças que não vemos, que não fazemos. As vozes dentro de nós que não ouvimos, que calamos nos tanques de lavar roupa da vida, esses nossos pseudo amores, essas verves mascaradas.
A cada espelho para o qual viramos o rosto nosso olhar se esvazia.
Eu fiz 26 anos e quero achar o meu espelho, quero ver no meu retrato as mudanças que não passarão desapercebidas.