Era como se as mãozinhas ainda estivessem ali, pressionando os botões do controle remoto do videogame, partindo as bolachas do lanche da tarde, tocando, tênues, para ver o que gritavam os vizinhos, a cortina branca agora furada pelas marcas de tiros, que também cravaram a parede e, para sempre, a vida daquele homem.
Desesperadamente calmo -talvez um dos piores desesperos-, sujo de sangue, de suor, de poieira e dessa humanidade perdida, ele se posiciona no exato lugar onde, horas antes, sua filha foi baleada, para mostrar sua tese de onde vinham os tiros, para contar os detalhes, as minúcias que cruelmente buscamos, daquela história -mais uma- aos que estávamos lá para conhecê-la in loco.
Era um desespero silencioso o daquele homem, cruelmente silencioso. Porque ele não gritava: falava baixo, até. Contava calmamente a história, pouco chorava.
De repente ele rompe a dor anestesida e, desviando das poças e marcas de sangue, joga no sofá, um a um e em cima das gotas de sangue, os livros escolares que as mãozinhas estavam a dias de começar a carregar. E pergunta, como que tentando desviar do problema central, o que fará agora com todos aqueles livros escolares novinhos que acabara de comprar. Ninguém sabe, ninguém ousa responder. É um desespero que cala fundo, é quase visível naquele vácuo de palavras, contidas por respeito às lágrimas do homem, que agora não mais se contêm.
Me viro para respeitar aquele momento. Olho para o chão, depois para a janela. E ali vai a pipa no céu azul, as roupas penduradas no varal. A tranqüilidade fajuta de uma tarde de sol forjadamente quieta, porque foi uma tarde que precedeu uma manhã estupidamente violenta.
Saio pela varanda da casa, onde uma poça de sangue descansa cruel embaixo de um biquini pendurado no varal e marcando território entre as pessoas ali sentadas sobre a revolta da dor e, mais ainda, sobre a revolta da sensação de impotência. Os olhos dessas pessoas denunciam isso, gritam isso.
Tudo está em estado de espera, é como se o próprio cenário não acreditasse que perdeu sua protagonista. Toda a casa estava decorada com o desespero silencioso do pai e a revolta dos olhos dos parentes: as paredes descacadas e afundadas com as marcas de tiros, o prato com pedaços de biscoito e o achocolatado derramado e o controle do videogame ainda pendurado na televisão, sob um quadro com a foto de Agatha posando e sorrindo, maquiada, produzida.
"Talvez era a princesinha da família", penso. A princesa que, como diz a música que toca no rádio do carro que me levou dali, aquele homem quis coroar, a princesa que sumiu no mundo sem lhe avisar -e talvez aquele homem esteja mesmo se perguntado o que a vida agora lhe fará.
Porque, assim, de um frame para outro, aquelas mãozinhas que há pouco pressionavam o controle do videogame que a menina jogava no seu último dia de férias descansam sobre uma maca fria do hospital. E viraram mais um número, talvez mais uma contabilidade dos "autos de resistência" da cidade, que não cessam de ser protagonistas nos aumentos percentuais de crimes a cada trimestre.
Virou um número, em vez de história. A história de Ágatha: Agatha fazia natação. Agatha queria ser veterinária. Agatha era alta. Agatha completara 11 anos há dias. Agatha estava no último dia de férias, que passava na casa do pai. Agatha disse: pai, pai, meu braço, depois de ser atingida por uma bala perdida dentro de casa e antes de morrer, nos braços do pai.
Agatha virou um número para a maioria de nós. Não para mim.
sexta-feira, 14 de março de 2008
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3 comentários:
Muito triste. É muito cruel ver inocentes vítimas dessa guerra sem fim. E o pior é que as histórias desse diário de guerra acabam se perdendo no ritmo frenético de novos acontecimentos com novos protagonistas desse verdadeiro genocídio. Além do próprio esquecimento humano. Lamentável.
"é como se o próprio cenário não acreditasse que perdeu sua protagonista" - bonito, muito bonito. Já passei por situações parecidas no exercício da profissão, mas nenhuma eu descrevi tão bem quanto você fez com a história de Agatha.
luisa, que sensibilidade... Lembro, que, à época, essa história me comoveu como poucas dentre os casos de polícia nos últimos tempos. Lembro até de achar que os jornais "explorarm pouco" esse "fato jornalístico". Visão de quem está de fora, perto e longe, de quem não tem chances de perder a filha se ela jogar vídeo game na janela e não viu o homem atirar os livros no sofá. A comoção, à época, veio com aquela imagem, a foto da menina, tão linda, exatamente como você descreveu e fez referência à música João e Maria, uma princesa... infelizmente isso vira números até para alguns jornalistas que cobrem a área. Enquanto não contarmos histórias, com sensibilidade, elas continuarão a existir, e, pior, a serem corriqueiras. Adorei o texto. Mas falta a foto dela... beijos
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